terça-feira, 1 de outubro de 2013

Quebrar o enguiço



 
Estas eleições autárquicas – apesar do regozijo proporcionado pela derrota clara deste execrável grupo de malfeitores que atualmente exerce o poder - deixaram um travo amargo. Se há muito não havia dúvidas de que Portugal continuava culturalmente a ser o “reino cadaveroso” que Ribeiro Sanches denunciava no século XVIII, poucas agora restaram: Entre nós o crime continua a compensar porque a justiça que defendemos está ao nível da nossa (a)moralidade e da débil cultura cívica e política que praticamos.


O crescimento da abstenção é a principal prova disso. Os quase 50% registados são uma demonstração clara de que estamos mais preparados para ser governados em ditadura do que a batermo-nos pelo aprofundamento da democracia. Ou seja: tendencialmente estamos mais disponíveis para aceitar o retrocesso, do que para progredir. Trocamos facilmente a liberdade e a razão por uma frágil segurança assente na ilusória estabilidade prometida por gente que frequentemente nem sequer conhecemos.


Dir-se-á, com razão, que estas eleições também mostraram aspetos inovadores muito interessantes. Houve experiências de aprofundamento da democracia que funcionaram e que foram premiadas. Houve demostração de iniciativas de cidadania com resultados concretos. Mas 50% de abstenção representa um grande número de pessoas, um número que não tem parado de aumentar. Por outro lado subsiste essa quase indiferença pelo perfil ético dos candidatos ao desempenho de cargos públicos. Fica pois um lastro de preocupação.


Tem sido feita a leitura de que a abstenção é um voto de protesto, contra os partidos, contra o sistema. Talvez seja, mas não deixa de ser também uma manifestação de incultura cívica e política. Se for um gesto intencional é como combater um incêndio atirando gasolina para cima. A abstenção não castigou o poder nem o sistema. Prejudicou sobretudo o campo progressista que, em muitos casos – com as suas divisões e sectarismos - se auto liquidou acabando por poupar os partidos do poder a uma queda mais esmagadora.


Maria João Avilez – a aristocrática comentadora da direita portuguesa mais arcaica -, exasperou-se na noite eleitoral contra a elevada abstenção que atribuía aos adeptos do PSD. Evidenciando a sua natureza petulante e pouco dada às coisas da razão, não percebeu que a abstenção é que salvou o PSD dum resultado ainda mais demolidor… Têm destas coisas este tipo de analistas. Mas o mais grave é que muita gente, responsável e empenhada na causa do progresso, não manifeste preocupações com este aspeto da vitória eleitoral.


Como povo parecemos ser mais apreciadores da força do que da ética. A justiça entre nós, é, há já muito, algo retórico para usar mais como argumento do como prática. Talvez isto tenha a ver com o facto de termos sido um dos últimos países a abolir o Tribunal do Santo Ofício, que durante 300 anos, perseguiu e queimou os espritos mais livres, nobres e cultos, deste (e doutros) país, organizando regularmente autos de fé para exaltar o feito. Medroso, inculto e submisso, o povo habituou-se a participar nestes bárbaros espetáculos, espetando alegremente tições nos condenados a caminho da fogueira, muitos dos quais já lá chegavam  cegos ou moribundos.


Somos herdeiros desta gente e talvez por isso poucos de nós – a começar pelos próprios juízes - acreditam na justiça. Veja-se como o concelho mais culto do país exultou com a vitória dum autarca que não teve reservas em meter a mão no “pote”. Barafusta-se contra a corrupção, maldizem-se os que abusam do poder, mas tudo isso pouca importância parece ter quando dos saques e vantagens ilegítimos se utiliza algo que exiba alguma obra…   Em termos de contas somos pouco exigentes, especialmente com os poderosos.


Há, sem dúvida, que relevar o lado positivo destas eleições, pois, se há coisa necessária nesta altura, é “animar a malta”. Mas há também que estar atento ao crescimento  entre nós da incultura política e à proliferação da chamada alienação social. As pessoas e organizações apostadas no progresso devem estar atentas à evolução deste fenómeno e procurar combatê-lo a todos os níveis, desde o público ao familiar. O espetro do “reino cadaveroso” continua vivo e só mudando a mentalidade dos portugueses, elevando o seu nível cultural – especialmente o cívico e político -, se poderá quebrar este secular enguiço.


Daniel D. Dias

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