Estas eleições autárquicas – apesar do regozijo proporcionado
pela derrota clara deste execrável grupo de malfeitores que atualmente exerce o
poder - deixaram um travo amargo. Se há muito não havia dúvidas de que Portugal
continuava culturalmente a ser o “reino cadaveroso” que Ribeiro Sanches
denunciava no século XVIII, poucas agora restaram: Entre nós o crime continua a
compensar porque a justiça que defendemos está ao nível da nossa (a)moralidade
e da débil cultura cívica e política que praticamos.
O crescimento da abstenção é a principal prova disso. Os quase
50% registados são uma demonstração clara de que estamos mais preparados para
ser governados em ditadura do que a batermo-nos pelo aprofundamento da
democracia. Ou seja: tendencialmente estamos mais disponíveis para aceitar o
retrocesso, do que para progredir. Trocamos facilmente a liberdade e a razão por
uma frágil segurança assente na ilusória estabilidade prometida por gente que
frequentemente nem sequer conhecemos.
Dir-se-á, com razão, que estas eleições também mostraram
aspetos inovadores muito interessantes. Houve experiências de aprofundamento da
democracia que funcionaram e que foram premiadas. Houve demostração de
iniciativas de cidadania com resultados concretos. Mas 50% de abstenção
representa um grande número de pessoas, um número que não tem parado de
aumentar. Por outro lado subsiste essa quase indiferença pelo perfil ético dos
candidatos ao desempenho de cargos públicos. Fica pois um lastro de preocupação.
Tem sido feita a leitura de que a abstenção é um voto de
protesto, contra os partidos, contra o sistema. Talvez seja, mas não deixa de
ser também uma manifestação de incultura cívica e política. Se for um gesto intencional
é como combater um incêndio atirando gasolina para cima. A abstenção não
castigou o poder nem o sistema. Prejudicou sobretudo o campo progressista que,
em muitos casos – com as suas divisões e sectarismos - se auto liquidou
acabando por poupar os partidos do poder a uma queda mais esmagadora.
Maria João Avilez – a aristocrática comentadora da direita
portuguesa mais arcaica -, exasperou-se na noite eleitoral contra a elevada
abstenção que atribuía aos adeptos do PSD. Evidenciando a sua natureza
petulante e pouco dada às coisas da razão, não percebeu que a abstenção é que
salvou o PSD dum resultado ainda mais demolidor… Têm destas coisas este tipo de
analistas. Mas o mais grave é que muita gente, responsável e empenhada na causa
do progresso, não manifeste preocupações com este aspeto da vitória eleitoral.
Como povo parecemos ser mais apreciadores da força do que da
ética. A justiça entre nós, é, há já muito, algo retórico para usar mais como
argumento do como prática. Talvez isto tenha a ver com o facto de termos sido um
dos últimos países a abolir o Tribunal do Santo Ofício, que durante 300 anos,
perseguiu e queimou os espritos mais livres, nobres e cultos, deste (e doutros)
país, organizando regularmente autos de fé para exaltar o feito. Medroso,
inculto e submisso, o povo habituou-se a participar nestes bárbaros espetáculos,
espetando alegremente tições nos condenados a caminho da fogueira, muitos dos quais
já lá chegavam cegos ou moribundos.
Somos herdeiros desta gente e talvez por isso poucos de nós
– a começar pelos próprios juízes - acreditam na justiça. Veja-se como o
concelho mais culto do país exultou com a vitória dum autarca que não teve
reservas em meter a mão no “pote”. Barafusta-se contra a corrupção, maldizem-se
os que abusam do poder, mas tudo isso pouca importância parece ter quando dos
saques e vantagens ilegítimos se utiliza algo que exiba alguma obra… Em
termos de contas somos pouco exigentes, especialmente com os poderosos.
Há, sem dúvida, que relevar o lado positivo destas eleições,
pois, se há coisa necessária nesta altura, é “animar a malta”. Mas há também que
estar atento ao crescimento entre nós da
incultura política e à proliferação da chamada alienação social. As pessoas e
organizações apostadas no progresso devem estar atentas à evolução deste
fenómeno e procurar combatê-lo a todos os níveis, desde o público ao familiar. O
espetro do “reino cadaveroso” continua vivo e só mudando a mentalidade dos
portugueses, elevando o seu nível cultural – especialmente o cívico e político
-, se poderá quebrar este secular enguiço.
Daniel D. Dias
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