Nada tenho contra os EUA. Sou grande admirador de muitos dos seus valores, valores que modernizaram mundo: do livre empreendedorismo, à liberdade criativa; do automóvel, à película fotográfica; da eletrificação, ao Macintosh; da vacina anti poliomielite à conquista espacial; do jazz à cultura pop; de Walt Whitman a Ernest Hemingway, balança toda essa minha admiração sincera que não se esgota aqui. Mas não aprecio a sua deriva imperial das últimas décadas, exportadora de violência militar e económica, de invasões a países soberanos, de suporte ativo a regimes retrógrados e desumanos, de difusão massiva de ideologias promotoras do egoísmo exacerbado e doentio, da apologia e banalização da violência, da subordinação da natureza e dos direitos humanos dos povos – incluído do seu próprio povo – aos interesses económicos dos grupos monopolistas que controlam o poder.
A dominância deste país tem criado raízes em quase todos os países do mundo. Sobretudo a ideológica, ou seja, a forma de pensar que subjaze a qualquer cultura. A “american way of life”, fortemente influenciada pelo condutismo de Watson, e, em especial, de Skinner, projetou-se de forma avassaladora por todo o mundo, gerando uma tal “americana pax”, recheada de contradições, de conflitos militares, de golpes de estado, de muito consumo supérfluo, de muita degradação ambiental, e de uma paz precária, ilusória ou muito condicionada.
Tudo isto foi possível graças à dominância que os EUA granjearam nos “media” mundiais. Hollywood foi naturalmente um dos seus pilares primordiais. Mas o controle que dispõem atualmente, direto e indireto, da internet, das centrais de comunicação e notícias, dos conglomerados de entretenimento e das redes por cabo, das centrais de distribuição dos conteúdos multimédia (filmes, séries, documentários), dos grandes grupos de publicidade, permite-lhes promover guerras “em diferido” – por exemplo as chamadas revoluções coloridas, as primaveras árabes -, tudo com menor necessidade de intervir diretamente no terreno, sobretudo com meios humanos. O armamento, o apoio mercenário, obviamente, também faz parte, mas segue depois.
Lembro-me que nos finais dos anos oitenta se discutia a possibilidade de liberalizar as rádios e as televisões em Portugal. Este fenómeno aconteceu em todo o mundo e em Portugal teve grande relevância. Depois de imensa controvérsia dominou a ideia que mais convinha à “pax americana”: acabar com a balbúrdia comunicativa que proliferava – a chamada “pirataria” - e entregar os “media” a grupos “civilizados” ligados a grandes interesses. Nasceu a SIC, a TVI… Na altura pagava-se uma taxa à TV pública, que era considerada um escândalo. Eram apenas alguns Euros por ano, mas geraram grandes protestos. Se havia publicidade paga, porque havia de haver taxa? Eu também protestei… Os novos grupos (e a nova orientação do setor) prometeram – a pretexto da liberalização – acabar com essas taxas. E assim foi, de princípio. Mas a situação aos poucos mudou radicalmente. A introdução da TV por cabo passou a ser paga, sem qualquer oposição. Depois começou a veicular publicidade (paga) na própria programação, apesar dos utentes pagarem um preço elevado pelo serviço. Mas nunca, até hoje, ouvi ninguém esboçar um esboço de revolta perante esta situação. Onde terá ficado essa contestação às taxas?
Mas o pior – para mim, bem entendido – é que estes serviços servidos ao domicílio e pagos principescamente, só veiculam a “pax americana”. Abro a TV (por cabo, claro) e só assisto à versão americana do mundo. Mais de 90% - não exagero - dos filmes e séries apresentados são norte americanos ou similares. Até mesmo nos canais ditos “Premium” (pagos à parte) só muito raramente e numa percentagem mínima se mostram filmes europeus ou de outras proveniências não americanas. Onde foi parar o “free cinema” inglês, a “nouvelle vague” francesa, o novo cinema alemão, o exaltante cinema italiano? Onde param os refrescantes cinemas, japonês, russo, canadiano, húngaro, jugoslavo? Nada sobrou? Eclipsaram-se? Ah: Os efeitos especiais massivos, as tecnologias de ponta, superaram tudo... É isso.
Outro aspeto pérfido deste predomínio ideológico da “pax americana” pode apreciar-se na singular coincidência temática dos filmes que nos são apresentados. Quando há qualquer acontecimento que aparenta fragilizar alguma faceta da “pax americana”, lá chovem os filmes que exaltam o papel dos americanos no mundo, seja na 2ª Guerra Mundial, seja na luta anti terrorista, seja nas diatribes da guerra fria, seja no universo dos super heróis… Será isto por acaso? Serei apenas eu (com a minha eventual má vontade) a reparar nisto?
O papel destes “media” controlados ajudam a deturpar a realidade e a também a história. Estudos mostram que a perceção de quem derrotou o nazismo alterou-se nas últimas décadas, eclipsando os verdadeiros vencedores. Muitos acontecimentos cruciais no mundo são, pura e simplesmente, suprimidos da agenda mediática. Pelo contrário incidentes pouco significativos, são empolados – quando não mesmo inventados – para apresentar relevância mundial e influenciar a opinião pública num ou noutro sentido. Mas o pior, para mim, é que nos aculturam, nos minam as raízes endémicas, sem nos acrescentar valor ou acrescentando muito pouco. Creio que para muitos de nós, certos atores americanos são mais familiares que os nossos próprios atores. No nosso cérebro estão eventualmente mais enraizadas as imagens dos lares, das urbes, das crises, das alegrias americanas, que as que ocorrem no nosso próprio seio. A globalização não é isto, não pode ser isto.
O hamburger e a salsicha, ao que parece, superam ou tendem a superar, as nossas comidas tradicionais. Não tenho nada contra salsichas, mas chateio-me com esse facto. Gosto de salsichas, gosto de hamburgers, mas prefiro um cozidinho. E não tenho nada contra a globalização… nem contra americanos.
Daniel D. Dias